Emergir no Apocalipse (Paulo Borges)
Emergir no Apocalipse
Viveram sem tempo, em intimidade com tudo,
ondas entrelaçadas no oceano das infinitas possibilidades e metamorfoses da dança
da Vida. Viveram em celebração e comunhão caósmica, no fervilhar de todo o
possível. Até que algumas ondas se imaginaram distintas. Pareceu-lhes parar de
dançar e fluir. Cristalizaram-se a dar nomes a si e a tudo e em vez de fluxos
passaram a percepcionar formas, seres e coisas. Começaram a ver-se como entidades
separadas e chamaram-se humanos. Para eles, mas só para eles, o mundo surgiu outro.
Na verdade tudo, e eles mesmos, jamais deixou de dançar e fluir no imenso e
superabundante oceano da Vida, mas deixaram de o experienciar. Viram-se então fechados
em si mesmos num mundo subitamente sentido como alheio e hostil. Sentiram-se ameaçados
e vulneráveis, carentes e ávidos. Aspiraram a emancipar-se dessa condição.
Acreditaram estar
realmente limitados e haver algo melhor a atingir, dominando, explorando e
refazendo o mundo, agora visto como exterior, para satisfazer as suas falsas
necessidades, desejos e caprichos. Organizaram-se para tal em grupos, tribos,
nações, Estados, impérios. Conceberam religiões e divindades que os protegessem
e salvassem, política, economia, ciências e técnicas que os desenvolvessem e
tornassem mais poderosos. Educaram os seus filhos não para dançarem com o
mundo, mas para o conquistarem e violarem. Partiram esfomeados em todas as
direcções. Devoraram a Terra. Devoraram os outros seres. Devoraram-se uns aos
outros. Sem saber que o fazia, e anestesiando a dor de o fazer com todo o tipo
de diversões e distracções, cada um devorou-se o mais que pôde a si próprio,
desbaratando ser, inteligência, amor, tempo e energia para ter cada vez mais
coisas, objectos, prazer, segurança, comodidade, poder, prestígio, sucesso. Chamaram
a isso progresso e imaginaram que cresceria até que a Terra se convertesse no
reino perpétuo do Humano.
Gradualmente, contudo, o
sentimento de fracasso e frustração dessa promessa e expectativa aumentou, os
seus efeitos devastadores e dolorosos cresceram e cresceu também o número dos
menos iludidos que começaram a anunciar que o fim da aventura estava próximo.
Na verdade, alguns começaram mesmo a entrever que nunca se haviam separado da
Terra, da Vida e das ondas do seu infinito oceano. Nunca haviam deixado de ser
íntimos ao mundo e à Natureza, mas o seu desejo de separação e a sua agressão
haviam feito com que um útero e um seio superabundantes se lhes manifestassem
agora como um crescente deserto devorador. Viram que o mundo estava a tornar-se
para si o mesmo que se haviam tornado para o mundo. Viram enfim que nunca houve
nem podia haver separação. Mas, apesar de serem cada vez mais, eram ainda assim
muito poucos a tomar consciência disso. A enorme maioria continuava, alheia às
advertências crescentes, na sua sanha devoradora. E a enorme maioria estava
representada nos Estados e corporações que, para manterem a sua única razão de
ser, a ilusão da separação e o domínio e devastação do mundo, faziam apenas as reformas
de superfície necessárias para que a sua guerra contra a Vida continuasse. Por
isso o deserto crescia. E os que viam um pouco mais fundo viam que em vez do
progresso anunciado o horizonte se raiava com as cores do Apocalipse...
II
Este podia ser um dos
mitos das nossas origens, simultaneamente verdadeiro e falso como todos os
mitos, que são as histórias que nos contamos para não ficar nus e silenciosos
perante o Sem Nome, consolar a solidão da mente e suportar o mistério da
existência. O que haverá nele de verdade é todavia coerente com o crescente
acumular das consequências de um erro de percepção que se tornou viral e, por isso
mesmo, desapercebido. Somos filhos de uma civilização, hoje globalizada, que
nasceu e continua a viver de considerar absolutamente real a maior ficção que a
mente alguma vez produziu: a de estar separada daquilo que percepciona e
experiencia e de haver uma cisão entre eu e não-eu, sujeitos e objectos, nós e
outros, cultura e natureza, humanos e não-humanos, animado e inanimado, mente e
corpo, espírito e matéria, sagrado e profano. A civilização globalizada é o
produto avançado e sofisticado de uma alucinação colectiva que se passou a receber
com o leite materno e se veicula na cultura dominante, na educação familiar e escolar,
na pressão social, nos meios de comunicação, nas instituições laicas e
religiosas e nos padrões de funcionamento neuronal. Apesar das tradições
sapienciais da humanidade, da filosofia perene e de hoje a física quântica e as
neurociências, entre outros ramos da pesquisa científica de vanguarda, saberem
que o que passa por real é uma ilusão, a ilusão da separação é vivida como
realidade indiscutível pela maioria dos seres humanos que se autoconsideram
normais e racionais. A par do sofrimento e da insatisfação milenares que são
endémicos na história das civilizações humanas e que na modernidade alimentam as
concepções utópicas e o sonho sempre desfeito do progresso, o efeito cada vez
mais sensível da ilusão da separação é o tremendo impacto sobre a Terra e a
biosfera da orientação industrialista, produtivista e extractivista da
civilização moderna e pós-moderna, consubstanciado na nova religião ou
superstição do crescimento económico a todo o custo piedosamente praticada por
esquerdas, centros e direitas, socialismos e capitalismos. As alterações
climáticas, a destruição da biodiversidade, a poluição dos solos, dos rios, dos
oceanos e do ar e a devastação dos recursos naturais são as consequências
externas e tangíveis do modo de percepção alucinada da realidade que se tornou
a norma na maioria das consciências que se autodesignam como humanas. O
Antropoceno, a sexta extinção massiva da biodiversidade - a primeira por causas
humanas e a primeira que, segundo relatórios científicos que se multiplicam
ante a quase indiferença dos governos e das corporações mundiais, ameaça seriamente a sobrevivência da própria
humanidade ou da sua qualidade mínima de vida - , é o resultado do estado letal
de consciência que passa por ser o único natural e normal. Vivemos em plena normose, a patologia da normalidade. O
Antropoceno manifesta a natureza destrutiva da percepção normalizada do mundo e
da realidade, que se pode resumir numa palavra: dualismo.
III
Vivemos
um Apocalipse. Vivemos em Apocalipse. Somos Apocalipse. Esta palavra, contudo, apesar de haver assumido
unilateralmente a conotação negativa de “destruição”, significa na verdade
“desvendamento”, “desocultamento” ou “revelação”. Um Apocalipse é sempre uma tremenda
e abissal experiência de verdade que nada destrói senão a ignorância, a ilusão,
as vendas e as máscaras da consciência que deixa subitamente nua perante os
seus processos íntimos e profundos, até então ocultos, pois submergidos ou
ofuscados pela desatenção, distracção ou esquecimento das dimensões mais recônditas
de si mesma. O que no Apocalipse que vivemos se destrói, a par da
biodiversidade, dos recursos naturais e das condições propícias à vida, é a
ilusão de haver separação entre o processo de consciência e existência que se
autodesigna como humano e a Terra, a Natureza e o não-humano. O impacto das
acções humanas sobre a Terra e, por isso mesmo, sobre a própria humanidade,
mostra claramente que nunca houve, não há e jamais poderá haver separação entre
o humano e o não-humano. O Antropoceno e a iminência de colapso ambiental e,
por consequência, social e civilizacional, é o Apocalipse da ilusão de haver
separação entre o humano, o mundo e o cosmos. O Antropoceno é a grande des-ilusão e, por isso, a irrupção da
verdade. Amarga e dolorosa, mas por isso mesmo libertadora. Reconheçamos,
apreciemos e amemos o Apocalipse, apesar de toda a dor que lhe é inerente, pois
o que nele se destrói ou desfaz são em primeira e última instância as nossas
maiores ilusões, zonas de conforto e segurança, bem como a sua projecção em
todos os nossos medos e expectativas. Reconheçamos, apreciemos e amemos o
Apocalipse, pois o que nele se revela são as potencialidades mais fundas do que
somos, por muito que tal custe à ficção do ego humano que se esforça por
sobreviver negando o seu fundo caósmico.
Tal como
o pictograma chinês que se traduz como crise
tem o duplo sentido de risco e oportunidade soberanos, também o Apocalipse
é um Janus bifronte onde o fim de um mundo traz em si a possibilidade de um
novo começo. Um Apocalipse é fim e início, submersão e emergência, dia que
declina e noite que amanhece. Dissolução de uma experiência de si e do mundo e mergulho
no infinito das possibilidades de surgimento de outra.
A
percepção dualista da realidade e da Vida continuará a ter os seus efeitos
letais, cuja expressão mais visível e monumental é a política e a economia
mundial, mas que se enraíza na visão dita normal da maioria dos seres humanos.
Por isso não é expectável que vá parar ou mesmo abrandar, a curto-médio prazo –
o prazo do qual os cientistas consideram depender a salvação da humanidade - ,
a destruição humana do não-humano, e por isso do humano, feito de não-humano.
Os governos e as corporações não vão querer parar de fazer o que é a razão e o
motivo da sua existência: colocar o mundo natural ao serviço da tribo humana
que se deixou enfeitiçar pela ideia de ser distinta desse mesmo mundo. Por aí
vem o Apocalipse como destruição e como a resposta natural do mundo ao aparato
humano que o tenta objectivar e instrumentalizar pela tecnociência ao serviço
do capitalismo mundial. O Apocalipse é a resposta natural da sempre presente e
envolvente Gaia aos filhos que a violam e assim a convertem de Mãe protectora
em Mãe devoradora. O Apocalipse é o desvendamento da grande Natureza a quem
dela ilusoriamente se pretende desligar.
IV
Ao mesmo tempo, o
Apocalipse como destruição oferece, junto com muito sofrimento e a probabilidade
de redução drástica da população humana, o convite a uma nova possibilidade de percepção
e experiência do mundo, a uma nova dança, a uma nova aliança simbiótica e
metamórfica com todas as ondas do Oceano da Vida, a um reencantamento da
experiência de viver e a um Despertar radical da consciência. Urge assim - a
par do activismo externo, que felizmente hoje se multiplica para preservar o
que se possa preservar e agenciar a já inevitável transição dolorosa - uma nova
acção, que não proceda de uma mera reacção ao que existe, mas que brote de uma outra
percepção e experiência de si e do mundo. Essa nova percepção e experiência
implica o fim de toda a ilusão dualista igualmente presente em quem vê o mundo,
a Terra e a Natureza como um objecto externo a explorar ou a preservar. Essa
nova percepção-experiência já não pode ser a de si e do mundo, a de si no
mundo, mas a de si-mundo, a de si como mundo e do mundo como si.
O mais
fundo Apocalipse é o da reintegração do humano e do humanismo antropocêntrico,
que ficcionou o humano no centro ou acima do mundo, num zerocentrismo caósmico,
que experiencie a realidade como livre de centro e como um processo que se
recria a cada instante no espaço aberto e informe onde todos os fenómenos e
formas de vida se metamorfoseiam uns nos outros, sem lugar para a cristalização
em entidades e identidades fixas e estáticas. O Apocalipse emerge e emergimos
no Apocalipse sempre que o que agora designamos como um mero corpo humano – o
de cada um de nós aqui presentes – se desvele como a própria Terra e o próprio
Cosmos, com tudo o que neles se contém, e ao mesmo tempo como o Espaço vazio e
informe, a grande Abertura a que os gregos chamaram Caos, onde tudo constante e
intemporalmente aparece e desaparece. O Apocalipse emerge e emergimos no
Apocalipse sempre que vejamos que somos mulheres-homens-terra-céu-fontes-rios-pedras-flores-frutos-animais-deuses
e o nada de tudo isso, como há mais de cinco séculos nos tentou pintar Jerónimo
Bosch no Jardim das Delícias. O
Apocalipse emerge e emergimos no Apocalipse sempre que vejamos que não somos
seres, mas sim entre-seres, não entidades, mas fluxos e metamorfoses, não
pessoas, mas danças teatrais, não realidades, mas sonhos a realizar-se e
irrealizar-se constantemente. O Apocalipse emerge e emergimos no Apocalipse
sempre que experienciemos que não estamos vivos nem mortos, mas que nascemos e
morremos a cada instante, e todo o caosmos connosco, em cada inspiração e
expiração. O Apocalipse emerge e emergimos no Apocalipse sempre que sintamos
que não respiramos, mas que somos antes respirados por um não sei quê que nos
deixa atónitos, perplexos e mudos. O Apocalipse emerge e emergimos no
Apocalipse sempre que se desvele que nunca verdadeiramente existimos nem
deixámos de existir, pois o que em tudo aparece e desaparece é algo que viaja nu
de todas as palavras, conceitos e imagens. O Apocalipse emerge e emergimos no
Apocalipse sempre que tudo a cada instante se desvele como uma Dança sem
regras, um Jogo sem propósito e uma Festa para a qual tudo e todos são
convidados. O Apocalipse emerge e emergimos no Apocalipse sempre que nós-tudo
sejamos apenas Ahs! de pasmo, espanto
e maravilha.
Em
termos práticos, preserve-se o que se puder e houver a preservar da grande
destruição-criação em curso para que haja cada vez mais lugares onde novas comunidades
- o mais resguardadas que for possível do colapso de um modelo e ciclo de
civilização - possam brotar da experiência deste mais fundo Apocalipse do ser e
da consciência. Para tal é necessário que a acção se não esgote no activismo
externo e tenha a coragem de se abrir a estas aventuras e metamorfoses
profundas do ser, da consciência e da experiência. O novo ciclo da Vida na
Terra passa pela mutação profunda do sentimento de si, de modo a que haja cada
vez mais quem se sinta Céu-Terra e tudo o que em ambos se contém.
Paulo Borges
10 de Janeiro de 2019
Muito grata por este Conhecimento. Bem-haja por existir.
ResponderEliminar